terça-feira, 27 de maio de 2008

A tarde

Esse texto tem uma história muito antiga.
Eu o escrevi pela primeira vez na década de 80.
Em 90, ele foi reescrito, e mudei alguns nomes e algumas falas, pois nunca antes havia digitado o original.
Em 2001, ele foi publicado no Caderno Leitura do Jornal de Jundiaí.
Transcrevo não o original, mas como foi publicado, pela primeira vez.

A tarde
A tarde caiu sem que ele se desse conta.
Sentado em sua velha poltrona, passou a tarde toda revirando fotos, na ânsia de encontrar o que há muito havia perdido, suas lembranças.
Histórias engraçadas, tragédias familiares, tragicomédias, situações delicadas e embaraçosas que permearam sua vida de forma pitoresca.
Por vezes o riso, por vezes as lágrimas lhe dominaram as emoções daquela tarde tão fria e silenciosa.
O único som presente, suas lembranças sendo arrancadas bem do fundo das caixas de papelão tão bem encapadas por sua esposa... Que saudades.
Saudade é um processo sufocante, pois quanto mais a sentimos, mais ela aumenta até que nossa vida seja tomada por elas nessa mesma tarde...fria e silenciosa.
O registro de seu casamento com a impressão em relevo do fotógrafo. Nunca mais havia visto registro similar e pensou em quanto estava ultrapassado.
“Agora elas são digitais, pai, vão direto para o computador, não precisa mais desse monte de papel” explicou o filho em sua tecnológica sabedoria. O que serão desses momentos de recordação, dessa insana busca de lembranças, quando não houver mais as caixas de fotografias da família? Pensou indignado.
Laura, sua esposa, estava linda na festa de formatura do filho, o da tecnologia.
Ela sempre ficava bem de rosa; combinava com sua tez clara e seus olhos azuis...ah aqueles olhos ao lindos que por diversas vezes conseguiram, mudos, expressar o que ele jamais conseguiria enquanto escritor, fazer em palavras ditas ou escritas.
Novamente as lágrimas lhe tomaram a face e ele as rejeitou com seu lenço.
Olhou pela janela assim que o sol sumiu no horizonte, indicando que já se fazia tarde. Tarde demais para lembranças ou para levantar dali naquele instante e retomar sua vida futura não sua vida passada. Desanimou...
Ester, a filha do meio, sempre tão amorosa, mas há muito sumida. Ia ser bom revê-la, pois além das saudades não conhecia ainda os netos, gêmeos, nascidos no verão passado.
Apenas Ruth, a filha mais nova ele via com freqüência, mas ela não tinha mais paciência e viajava em seus sapatos reluzentes pelas ruas da cidade, sem tempo para o que era velho, sem tempo para o que não era do seu mundo...
As buzinas lá fora o avisaram que era hora do rush. Palavrinha complicada que ele demorou a entender. Em seu tempo isso não existia.
Olhou pela janela e viu que a noite já caíra por completo. Recolheu as fotos, uma a uma; enxugou as lágrimas novamente e esperou a campainha tocar em silêncio.
Fechou seus olhos e reviu cada filho seu lhe sendo entregue ali, na maternidade, quantas alegrias viveu e entendeu que não havia mais porque chorar.
Um carro à porta parou e ele sabia que era chegada a hora. Seu filho mais velho chegara para buscá-lo.
Era noite de Natal e pela primeira vez, ia estar só com seus filhos e netos, sem Laura, mas com a certeza de ter vivido plenamente, cada minuto lembrado.

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